quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Da Vinci e o controle das águas

Em época de devastações causadas pelas chuvas na Região Serrana do Rio, pode ser confortante lembrar que a natureza das águas foi estudada por um dos maiores gênios da humanidade
Ronaldo Pelli
Em época de enchentes, devastações e centenas de mortes causadas pelas chuvas na Região Serrana do Rio, pode ser um pouco confortante lembrar que o controle das águas foi o objeto de estudo e preocupação de, pelo menos, um dos maiores gênios da humanidade: Leonardo da Vinci. A razão desse interesse, segundo Carlo Pedretti – um dos maiores especialistas vivo em Da Vinci – seria exatamente um trauma parecido com o que passaram milhares de pessoas recentemente: o maior representante do Renascimento teria presenciado uma enchente que o marcou para sempre.

[Esboço de Da Vinci de um desenho retratando uma montanha destruída pela força da água]
Se não podemos afirmar isso, podemos, ao menos supor. O historiador da arte e artista plástico Marcelo Guimarães Lima, que cita Pedretti, diz que é provável que o pequeno Leonardo tenha ouvido e até mesmo presenciado alguns desastres dessa tipo na sua Toscana natal, o que teria influenciado sua produção não só artística, mas, principalmente, sua pesquisa científica.

Fato é que, apesar de Da Vinci ser bastante reconhecido por seus trabalhos como pintor, ele tem, relativamente, poucos quadros. São cerca de duas dezenas o número de suas pinturas, contando entre as produções que são universalmente atribuídas a ele, como a “Mona Lisa”, ou obras (muito ou pouco) controversas, como “A virgem do cravo”, a qual pode ter tido intervenções de outros artistas pós-Leonardo.

“O artista, na sua maturidade, produziu descrições e desenhos de tempestades, inundações, destruição e morte causadas pela água, que afetaram comunidades humanas. Desenhos e descrições cuja novidade, intensidade de expressão e qualidade estética levaram estudiosos a supor que refletiam não apenas os conhecimentos teóricos, científicos e literários de um estudioso infatigável, mas a experiência vivida por um artista de sensibilidade aguçada”, escreve Marcelo Guimarães Lima.

Dentro dessa produção imensa, os cadernos de rascunho de Da Vinci chamados “Codex Leicester” se destacam pela sua ligação estreita com a água, principalmente pelo estudo da hidráulica. A maneira como se comportam os líquidos, como produzir energia com eles, como, enfim, controlar a água, que pode arrasar cidades inteiras.
[A primeira página do Codex Leicester]
O “Leicester” é provavelmente o caderno mais famoso entre as cerca de 5 mil páginas escritas em seu (dele) sentido tradicional – da direita para a esquerda – que ficaram para a posteridade. Desde 1994, pertence a Bill Gates, fundador da Microsoft, que o comprou com a maior soma paga por um livro na História, US$ 30,8 milhões. Antes, ele se chamou, por um breve espaço de tempo, Hammer, por ter sido adquirido por um milionário excêntrico americano que emprestou seu sobrenome a ele. Leicester, por sua vez, era o título da família do nobre que comprou o caderno de rascunhos de Da Vinci ainda no século XVII, sendo responsável por esses rascunhos até 1980, quando foi adquirido por Hammer. São 18 folhas duplas escritas entre 1506 e 1508 que podem ser divididas em cinco espécies de capítulo: “A natureza e o movimento das águas”; “Dos rios e dos oceanos”; “Medições e o uso para a água”; “Fósseis e o dilúvio”; “A lua e o céu”. Mesmo nesta única seção que não faz menção direta à água, Da Vinci não se esquece dela. Ele afirma, por exemplo, que a superfície acinzentada que aparece no início da Lua crescente se daria por conta da luz do Sol que refletiria na Terra e iluminaria fracamente o satélite. E os oceanos teriam importância nesse processo porque, para Da Vinci, água remetia – literal e literariamente – a espelhos.

Essa divisão em cinco partes é feita pelo Museu Americano de História Natural, que explica cada um dos segmentos. No primeiro, “A natureza...”, Leonardo escreve e ilustra as inúmeras possibilidades de movimento da água, principalmente quando a água encontra obstáculos, portanto uma força contrária em seu movimento, discutindo o impacto e como ela rebate. No segundo, “Dos rios...”, comenta a dinâmica do transporte de partículas pela água e o padrão do curso dos rios em áreas com obstáculos. No seguinte, “Medições...”, ele tenta estabelecer aferições para a força da água, a variação da velocidade dos rios, e também desenha esboços para a construção de barreiras e outras formas de controle da água.
Junte à vontade de controlador de águas de Da Vinci a informação de que o “engenheiro” Leonardo também tinha sido “contratado” por um certo Nicolau Maquiavel para a construção de um canal que ligaria o rio Arno, que passa na Toscana, até o mar. O canal teria importância econômica, porque, Florença poderia vender água para os fazendeiros; e militar, acabando com o abastecimento da rival Pisa. Porém, uma enchente no Arno acabou com os planos dos dois renascentistas, que pareciam perfeitos no papel.

Infelizmente, todas essas citações nos fazem lembrar do tamanho da tragédia que atingiu, principalmente, as cidades de Nova Friburgo e Teresópolis. Saber que nem mesmo um dos maiores gênios da humanidade conseguiu imaginar formas de controlar a força da natureza deixa um sinal de desesperança generalizado. Entretanto, o maior ensinamento do italiano talvez não seja o controle da água, mas o que se pode aprender com ela. O artista e historiador Marcelo Guimarães Lima cita que a água é o símbolo da renovação e renascimento, de purificação, de transformação e de fluxo; da memória e do esquecimento e, principalmente, do tempo.

“A água como elemento do ciclo da vida e da morte, como símbolo de destruição e renovação, está presente, como observamos, nos desenhos dos 'dilúvios' de Leonardo da Vinci. Desenhos que representam uma espécie de 'síntese final' da busca incansável do mestre florentino pelo conhecimento das forças físicas do mundo e da forma ideal na Arte”, escreve Guimarães Lima.

O próprio Da Vinci propõe que não esqueçamos do que aprendemos e divulguemos os nossos conhecimentos. Como todo homem do Renascentismo, ele valoriza o homem e a ciência em detrimento de uma explicação universal divina. Em um de seus cadernos de rascunho, ele anotou: “Quando você escrever sobre a ciência da mobilidade da água, lembre-se de colocar sob cada proposição sua aplicação e uso, de maneira que a ciência não seja inútil”. Já o professor americano Roger D. Master, que escreveu um livro sobre esse curioso encontro entre Maquiavel e Da Vinci, escolheu como epígrafe para o seu livro uma outra frase de Leonardo que, se não conforta, por conta de sua dureza, explica metaforicamente uma proposta de conviver com inteligência com os rios e, por consequência, com toda a natureza, sem tentar domá-la, nem se impor:

“Entre todas as causas de destruição da propriedade humana, me parece que os rios vêm em primeiro lugar por conta de suas excessivas e violentas inundações... Um rio que é levado de um lado para outro deve ser seduzido e não tratado com grosseria ou com violência.”

Fonte: RHBN

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