Texto Retirado do Portal Carta Maior:
“A classe dominante não tem interesse em mudar a educação”
O
peso de seus argumentos em programas de televisão, a clareza de suas
intervenções diante das autoridades e a capacidade inata de aglutinar as
massas, converteram Camila Vallejo na líder mais visível deste
movimento que já derrubou um ministro e jogou o governo de Sebastián
Piñera nas cordas. Usando um jeans surrado, um lenço artesanal no
pescoço, um piercing no nariz e esse olhar que esconde uma das mentes
políticas mais brilhantes que apareceram no Chile nos últimos anos,
Camila concedeu uma entrevista exclusiva a Christian Palma,
correspondente da Carta Maior em Santiago do Chile.
Christian Palma - Correspondente da Carta Maior em Santiago - @chripalma
Há
três meses, Camila Vallejo, a carismática presidenta da Federação de
Estudantes da Universidade do Chile (Fech), podia tomar um metrô
tranquilamente e caminhar sem chamar a atenção mais do que qualquer
outra mulher chilena. Nesse tempo, os estudantes universitários e
secundaristas iniciavam um movimento sem precedentes que inclui até hoje
ocupações e greves nas escolas do país e diversas marchas pelas
principais cidades chilenas pedindo fundamentalmente o fim do lucro no
sistema educacional, mais qualidade nos conteúdos ministrados nas salas
de aula e gratuidade completa na educação pública.
Ela,
com paciência, visitava os colégios explicando ponto por ponto as
razões das reivindicações estudantis e parava para conversar com os
jornalistas com calma. Foi em um desses eventos que a conheci. Usando um
jeans surrado, um lenço artesanal no pescoço, um piercing no nariz e
esse olhar que esconde uma das mentes políticas mais brilhantes que
apareceram no Chile nos últimos anos, trocamos algumas palavras.
A
revolução estudantil se incendiou, os argumentos dos estudantes foram
entendidos e valorizados pela cidadania e Camila Vallejo demonstrou que é
muito mais do que um rosto bonito. O peso de seus argumentos em
programas de televisão, a clareza de suas intervenções diante das
autoridades e a capacidade inata de aglutinar as massas, converteram
Camila na líder mais visível deste movimento que já derrubou um ministro
e obrigou o governo de direita de Sebastián Piñera a oferecer três
alternativas para destravar o conflito. Mas nenhuma delas satisfez os
estudantes.
Tamanha
foi a pressão sobre o governo, que o próprio Piñera chamou os jovens
para uma conversa neste sábado no palácio de La Moneda. Um dia antes
deste convite que pode marcar o início do fim da crise, Camila Vallejo,
achou um espaço em sua agenda e concedeu esta entrevista exclusiva à
Carta Maior, recém chegada de Brasília, onde se reuniu com seus pares
brasileiros. Ela reconhece que tem tempo apenas para comer.
Considerando
as dezenas de pedidos de entrevistas solicitadas por meios de
comunicação chilenos e estrangeiros, interessados nesta jovem mulher,
alguns minutos com ela são um luxo.
Estrela
das redes sociais – como boa parte de sua geração – convocou milhares
por meio do Facebook e do Twitter, mas também foi ameaçada de morte ou
insultada covardemente pela web. Tranquila, diz que está consciente dos
riscos que isso significa, mas, mais importante ainda, sabe a tremenda
responsabilidade que passa a ter com apenas 23 anos.
Senhoras
e senhores, com vocês Camila Antonia Amaranta Vallejo Dowling, a menina
que jogou o governo de direita de Sebastian Piñera nas cordas. Saiba
por que.
-
Você diz que as demandas estudantis não são um assunto de direita ou
esquerda, mas sim de toda a sociedade chilena. Acredita que a cidadania
entendeu isso?
Este
movimento alcançou uma massividade e uma transversalidade que nunca
tinham sido vistas desde o retorno à democracia (1990). Uma enorme
parcela daqueles que, em um determinado momento, apoiaram Piñera, hoje
se dá conta de que este não é um ataque direto à sua posição, mas sim a
um modelo de educação que concebe a educação como um bem de mercado e
não como um direito, e também a um sistema democrático que hoje, se
reconhece , é muito estreito.
O
questionamento à conduta do governo, inclusive de cidadãos que
pertencem a setores que, em um determinado momento, apoiaram o atual
presidente, deixa evidente que existe o entendimento de que a luta que
hoje travamos é pelo direito à educação e por uma mudança de sistema que
beneficie toda a sociedade e o desenvolvimento do Chile. Ela não se
limita a buscar benefícios para um setor político particular.
O movimento se polarizou entre direita e esquerda. Isso é prejudicial?
Para
entender esse conflito é preciso analisá-lo a partir de duas
perspectivas. Por um lado, é preciso considerar que, junto à população, a
problemática educacional se transversalizou de uma forma nunca vista, o
que tem gerado um apoio massivo ao movimento vindo de diversos setores e
atores ligados à educação. Por outro lado, temos um setor muito mais
minoritário e ideológico representado pelas classes dominantes, que não
estão interessadas em uma mudança na educação, tanto porque o atual
sistema beneficia diretamente seus bolsos, como porque ele os mantêm em
sua posição de privilegiados frente a uma população com fraca educação. A
polarização de duas grandes alternativas educacionais é produto da
postura intransigente desse setor. Ou seja, a polarização não se
encontra no interior do movimento estudantil – que tem sabido priorizar a
unidade atuando de forma conjunta -, mas sim representa uma enorme
contradição entre as mudanças que a cidadania está exigindo hoje frente
uma minoria conservadora cujos interesses são representados pelo
Executivo.
Qual a consistência deste movimento para resistir às artimanhas urdidas no espectro político da direita e também do governo?
Hoje
o movimento conta com uma série de fortalezas, tais como a amplitude
que ultrapassa o meramente estudantil e o transforma em um movimento
social; a unidade dos diferentes atores ligados ao mundo educacional,
que após um longo processo conseguiram conjugar esforços em torno de
pautas unificadas; a representatividade dos anseios da cidadania, na
medida em que tem ocorrido processos democráticos por meio dos quais se
definem as melhores estratégias a utilizar; e, finalmente, conta com a
experiência histórica dos diferentes movimentos que nos precederam como o
foi o movimento estudantil dos “pinguins” (estudantes secundaristas) de
2006.
O
movimento se vale de todas essas ferramentas para fazer frente às
diferentes artimanhas que podem surgir tanto da articulação da direita
como do governo, as quais, até aqui, temos sabido enfrentar.
Atuação do governo
Para
entender um pouco mais o sistema educacional chileno e por que a
direita não quer transformá-lo é preciso ter em mente que há três tipos
de escolas de educação superior herdados da ditadura de Pinochet. Há os
centros de formação técnica, os institutos profissionais e as
universidades que se dividem em tradicionais, com aportes do Estado, e
privadas. O ingresso nelas passa por uma prova de conhecimentos e, para
os que não têm dinheiro, há um sistema de créditos outorgados pelo setor
privado quase sem nenhuma regulação e com juros altíssimos. Em 2006, a
presidenta Michelle Bachelet se complicou com a “Revolução dos Pinguins”
que mobilizou só os estudantes secundaristas. Eles receberam promessas
que não foram cumpridas e agora, com 80% da cidadania aprovando as
mobilizações, o governo de Piñera recebeu os protestos na sua porta.
Qual
sua avaliação sobre a atuação do governo no tema? Não deu resposta às
suas demandas, faz declarações infelizes saindo da boca do próprio
presidente (“não há nada grátis na vida”, “as pedras nos levaram à
ruptura da democracia”) e tenta dar um perfil violento às marchas (com
infiltração de policiais).
O
governo não está escutando a cidadania, o que mostra que está disposto a
seguir defendendo intransigentemente seu modelo educativo, inclusive
assumindo o custo de omitir o que o povo tem demandado massivamente
durante mais de três meses.
Não
contente com isso, tem explorado ao máximo as ferramentas com as quais
conta o governo e a direita chilena – meios de comunicação, força
policial e militar, respaldo dos grandes grupos econômicos – para
deslegitimar o movimento, baseando-se na mentira por trás de estratégias
populistas.
A
pressão social que este movimento conseguiu acumular obrigou Piñera a
mostrar do que é feito este governo, quais são os limites democráticos
que ele está disposto a cruzar e quem representa realmente, o que
constitui um enorme desprestígio e desaprovação de sua gestão, o que já
foi expresso nas últimas pesquisas que, historicamente, eles mesmos têm
validado.
O
questionamento à incapacidade de manejar a demanda social por uma
educação pública gratuita e de qualidade para todos alcança novos níveis
na medida em que o grau de repressão ultrapassou qualquer limite de
tolerância de um Estado de Direito. Durante esses meses de protesto,
temos sido testemunhas de aberrantes abusos por parte do corpo policial,
sob ordens do Executivo, através do Ministro do Interior e Segurança
Pública, Rodrigo Hinzpeter, o que atingiu seu ápice com a morte de um
estudante na semana passada.
Qual sua opinião sobre o papel da Concertação (oposição) em tudo isso?
A Concertação desemprenhou um papel bastante oportunista tentando
obter
ganhos políticos com o que ocorre hoje no país. Neste sentido vemos
hoje representantes dessa coletividade criticando o modelo educacional,
como, por exemplo, o ex-presidente Ricardo Lagos que diz “que o modelo
não já não aguenta mais”, esquecendo-se que foram eles mesmos que
administraram e aprofundaram a mercantilização da educação e que, por
outro lado, um importante setor dessa organização é formado por
proprietários de colégios, por investidores no negócio da educação
superior.
Apesar
disso, dado o nível de participação que a Concertação tem no
Parlamento, corresponde a eles agora responder a altura de suas
declarações em favor do movimento. Ou seja, devem assegurar que os
projetos de lei que surgiram dessas mobilizações representem
integralmente o que as demandas sociais estabeleceram e, por motivo
nenhum, devem voltar a negociar pelas costas do movimento, como terminou
ocorrendo com o processo da Revolução dos Pinguins de 2006.
Com a foice e o martelo no coração
Camila
Vallejo é filha de ex-militantes allendistas e referência das
Juventudes Comunistas. Na atualidade, foi obrigada a congelar a tese
para se formar em geografia. Ela não reconhece abertamente, mas tampouco
descarta seguir uma carreira política.
Já pensou em seguir sendo dirigente no futuro, ainda mais em um país carente de líderes jovens?
Sobre
o meu futuro, tenho dito que tenho um projeto pessoal de caráter
acadêmico, ou seja, gostaria de terminar meu curso e seguir neste
caminho. No entanto, concebo os cargos de representação como uma
responsabilidade e de modo algum como um privilégio, pelo que, a priori,
não posso dizer que não continuarei tendo cargos de representação
popular.
Alguns
dirigentes estudantis internacionais olham com especial atenção para o
Chile, depositam esperança neste movimento e estão atentos para que as
conquistas não sejam perdidas. Como avalia essa tremenda
responsabilidade?
Creio
que a esperança de que as conquistas desse movimento não sejam
perdidas, assim como a responsabilidade por elas é compartilhada pela
totalidade dos envolvidos. Se é verdade que, às vezes, minha pessoa é
transformada em ícone do movimento, temos claro que a sua construção é
uma conquista que pertence a todos. Confio que temos feito as coisas
corretamente, o que é demonstrado pelo incrível apoio cidadão que nos
acompanha três meses depois de iniciada essa mobilização. Sob estas
condições, se o governo não tiver suas demandas satisfeitas, isso será
responsabilidade da intransigência do governo e da traição da cidadania
por parte da direita chilena, o que não estamos dispostos a tolerar.
O
que te parece o modelo educacional de Lula (ProUni) que estabelece um
mecanismo de bolsas de estudo para estudantes de universidades privadas
com finalidade lucrativa, mas que está dirigido especialmente para
estudantes de baixa renda e é financiado com isenções fiscais para esses
estabelecimentos?
Para
além do detalhe técnico das propostas, o que hoje estamos defendendo no
Chile são ideias políticas muito concretas. E o fim do lucro na
educação é uma das consignas que teve maior adesão da cidadania. A
própria lei chilena de Educação criada na ditadura proíbe o fim do lucro
em todas as universidades. O cumprimento dessa lei é um dever que esse
governo descumpriu grosseiramente e que, após essa mobilização, não nos
contentaremos com a continuidade dessa situação. É preciso avançar na
direção da proibição do lucro em todo o sistema educacional, desde o
pré-escolar a todos os setores de educação superior, assegurando sanções
para aqueles que descumprirem esta lei e para aqueles que fizeram isso
durante os últimos 30 anos.
Qual
sua impressão sobre o apoio dos trabalhadores às mobilizações
estudantis e sobre a convocação de outra mobilização massiva para 8 de
setembro?
O
fato de os trabalhadores apoiarem as mobilizações é algo fundamental
para cada processo histórico revolucionário, pois como sujeito histórico
o trabalhador que hoje se encontra diretamente explorado pelo processo
produtivo sobre o qual se sustenta nossa sociedade capitalista
neoliberal.
Se
nós, jovens estudantes, somos chamados a gerar e fomentar as mudanças,
temos que ter claro que estas devem se realizar junto aos trabalhadores,
pois são eles, finalmente, o real motor da história.
Você
sofreu críticas e ataques maliciosos. Você disse que eles fazem parte
do jogo, mas alguns ultrapassam todos os limites, como o de que é
manipulada pelo Partido Comunista. O que diz sobre isso?
Efetivamente,
eu sou militante das Juventudes Comunistas do Chile e isso é algo que
nunca escondi, muito pelo contrário, é algo do que sinto muito orgulho,
pois é uma grande escola que me permitiu crescer e desenvolver-me
politicamente.
Além
disso, é de se esperar que, na atual situação, aqueles que não estão à
altura do conflito busquem argumentos como estes para atacar, não
somente a mim, mas também ao resto dos dirigentes. Mas o certo é que
hoje eu represento não só os estudantes da Universidade do Chile, cuja
Federação presido, mas também me toca ser a voz de todos os estudantes
do Chile, enquanto porta-voz da Confederação de Estudantes do Chile
(Confech) e a legitimidade que tanto os estudantes como a cidadania
concederam a meu desempenho evidencia que essas acusações não passam de
sujas estratégias desesperadas de quem, como disse anteriormente, não
tem sido capaz de ganhar o debate.
Tradução: Katarina Peixoto