segunda-feira, 18 de abril de 2011

Onde está o povo nas lutas da história do Brasil!?!

 
Nos livros de história o povo quase nunca aparece. É Pedro I gritando, Bonifácio propondo, Isabel "abolicionando", Caxias puxando a espada, um tal de "quem for brasileiro, siga-me" ou "morre um liberal mas não morre a liberdade". Povo que é bom...

Será verdade?

Fala-se muito que este é um "povinho safado" . Dizem que o brasileiro não luta, aceita os fatos passivamente e que as grande mudanças na política acontecem sem sua presença.

Melhor repensar algumas coisas. Quem é o povo? O que são grandes mudanças políticas? E, afinal, a velha e anedótica questão - que país é este?

Antes das respostas, porém, vamos lembrar o óbvio: sem povo, não há história. E repetir o truísmo: a história tem sido escrita pelos vencedores. Especialmente no Brasil, com raras exceções, sua interpretação é feita pelas classes dominantes.

Uma das características básicas da historiografia oficial é negar ao povo qualquer participação profunda nas mudanças da sociedade. A partir daí se exerce um controle ideológico tendo por base o seguinte: são os "grandes homens", os "heróis" e os "santos" que lutam pelas massas, pois elas são incapazes de entender a grande política.

O culto ao herói, ao grande homem, é utilíssimo ao poder. Através do mito criado aprendemos a respeita a autoridade e a não questionar o que é "de lei". O culto aos grandes homens do passado, feito muitas vezes contra a verdade histórica, projeta-se nos anões políticos do presente, menosprezando a capacidade política do povo de cuidar do seu próprio destino. É muito simples entender, mas bastante complexo desarmar toda essa mistificação.

Séculos de dominação ideológica, que nunca mostram o outro lado da história, levam-nos a acreditar nas "verdades estabelecidas". Com referência à história do Brasil, é mais fácil as pessoas aceitarem a mentira do que a verdade. Uma consequência lógica. É uma das grandes forças que mantêm a opressão sobre a maioria do povo brasileiro.

Este texto não pretende ser o dono da verdade - é preciso duvidar dos "donos da verdade" - mas oferece uma pequena contribuição á quebra de mitos. Comecemos então com alguns deles.

No início era o caos.

Já ouvimos a história: Deus criou a Terra, "...que era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o espírito de Deus de movia sobre a face das águas".

Os homens precisavam explicar o mundo; viviam e morriam em um universo que não entendiam. Para explicar o desconhecido, inventam. A invenção acalma os curiosos, elimina ou "explica" seus medos.

As lendas, surgidas para satisfazer a curiosidade popular, logo passam a ter uma função política mais definida, organizando a vida através da sua manipulação por grupos sociais e seus líderes. Dentro de certo tempo transformam-se em mitos absolutos. Primeiro divertem e explicam. Depois, servem aos núcleos dominantes: intimidam e condicionam comportamentos.

Os primeiros grupos de poder usufruem precariamente desses mitos, explicando o mundo. Com o desenvolvimento cultural, os intelectuais "trabalham" e "refinam" as lendas e elas acabam condicionando os homens de justificando os sistemas sociais. A permanência do mito é um dos seus aspectos políticos mais importantes.

Depois de milhares de anos de vida social, não é de admirar que a maioria das pessoas acredite que o mal seja um castigo divino para a humanidade pecadora. Milhões ainda crêem que a maldade - onde de incluem a miséria, a opressão, o roubo etc. - não decorre essencialmente dos desajustes sociais atuantes sobre o homem. Pelo contrário, aceitam que a sociedade é injusta porque os homens são maus.

Um dos mais velhos mitos, o da Idade do Ouro, com sutis modificações, ainda condiciona a mente dos homens. Antigamente tudo era paz e fartura. Então foi aberta a caixa da lendária Pandora, deixando escapar as maldades ali contidas. Foi o caos. Acabou-se o milagre. Não mais rios de mel e alimento abundante.

Tanto aí como com Adão e Eva, o homem perdeu o paraíso. Agora teria que trabalhar e sofrer para purgar seu pecado.

O que tem este breve e incompleto texto com o nosso tema? Tem que o Brasil, ao ser "descoberto", oferece a oportunidade de se reinventar o paraíso.

Uma das primeiras informações de Colombo sobre a América afirma que ele descobrira o paraíso - o Éden - onde teriam vivido Adão e Eva. Fala da natureza dadivosa, rios de mel, flores perfumando o ar, elogia o clima, que não é frio nem quente, conta sobre monstros dóceis etc. Tudo isso serve de apelo promocional para a nova terra.

Os primeiros escritos sobre o Brasil narram maravilhas. José de Anchieta, por exemplo, inventa que aqui os homens nunca adoecem; ninguém precisa trabalhar: os frutos estão prontos para a colheita. Vários escritores da época falam em abundância de ouro e prata, pedras preciosas ao alcance das mãos. As nossas índias, segundo Caminha, tinham as "vergonhas saradinhas" e os índios nao se incomodavam se os brancos folgassem com elas.

São meias verdades e mentiras transformando-se em mito: o que havia era muito mosquito picando português; mel, só subindo-se em árvores para pegá-lo, desafiando as abelhas; folgar com as índias? - e o tacape dos bugres?

Que em se plantando tudo dava, quem soube foi o negro, lavrando a terra onde fez nascer canaviais.

Por que tanta mentira? E po que tanta mentira virou "verdade" na história, permanecendo inclusive algumas ainda hoje?

Porque Portugal precisava colonizar este país, de certa forma inóspito. Os portugueses recusavam-se a viajar para o Brasil naquelas caravelas inseguras, com medo de naufragar pelo mar oceano. Então, numa época de grande miséria e repressão religiosa e política na Europa, acena-se com um paraíso á mão: o Brasil. A propaganda é tão descarada que quando alguns começam a duvidar desse paraíso, dando pela falta da maçã - afinal, a fruta comida por Eva - alguns intelectuais desenvolvem a teoria de que realmente a tal fruta foi o maracujá, abundante no Brasil.

É preciso mentir e criar o mito, para colonizar o país.

E não param mais.

Tanto não param que, ao se descobrir que o índio não é dócil e luta para não ser escravizado, inventa-se que ele é preguiçoso e não que trabalhar. Até hoje muita gente acredita nisso. E tome matança de índios, que ainda nao parou.

Eles reagem e não aceitam a escravidão e, por isso, importam-se negros. Como Portugal é uma nação católica e escravizar seres humanos fere a moral cristã, o papa Inocêncio IV edita uma bula afirmando que negro não tem alma e, assim, ao morrer ele ganha o céu... tão mais merecido quanto mais sofrer neste vale de lágrimas (ou seja, quanto mais enriquecer seu senhor).

Criar mentiras e tranformá-las em mitos foi uma necessidade do invasor portugês no Brasil. Deu tão certo que o processo continuou para justificar a opressão do povo. De um lado, os que estavam com o poder foram transformados em heróis, super-homens; os que ficaram ao lado do povo, nas suas lutas libertárias, desapareceram ou foram apresentados como bandidos e dementes.

Em Os sertões, por exemplo, Euclides da Cunha diz que o mestiço - por acaso a maioria do nosso povo - é um decaído, "sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores", que certamente são os "brancos". Antônio Conselheiro era, para Euclides, o representante de "todas as tendências impulsivas das raças inferiores".

Ao lado dessa difamação da gente do povo houve a deificação dos representantes do poder. Pedro I, por exemplo, nada tem de heróico era até covarde em certa medida, inescrupuloso violador de menores indefesas. O seu grito não libertou o Brasil, nem ele queria isso. José Bonifácio era um dúbio senhor, dizendo o que não fazia, perseguindo inimigos ao mesmo tempo em que produzia  esboços de projetos liberais. Caxias foi terrível exterminador de rebeldes, a ferro e fogo. Intrigava e subornava, responsável pela matança de negros em porongos, como veremos.

Não se trata simplesmente de inverter as coisas, dizendo o contrário do que a historiografia oficial afirma. Nada disso, mas demonstrar que, por exemplo, um senador chamado de ladrão no seu tempo, numa injusta intriga política, passa a herói, como Caxias. E que um demônio como Tiradentes transmuda-se em santo quando o poder tem necessidade de um novo tipo de mártir.

Esse começo não parece promissor. Portanto, melhor mesmo é nos atermos às lutas do povo brasileiro. A algumas delas, aqui julgamos as mais características, para lembrar que o povo brasileiro luta, é traído, apanha mais do que bate e sempre, quando vencido, é tratado como animal feroz que precisa ser extirpado da face da Terra, como em Canudos, na Cabanagem, em Porongos, na Balaiada...

Mais fácil, portanto, é extirpar este bravo povo das páginas da história oficial do que do seu país. Ele está ai. Lutando.


Texto retirado do livro "AS LUTAS DO POVO BRASILEIRO - Do 'descobrimento' a canudos" de Júlio José Chiavenato